Abstracção #5

01:28

Acordou no mesmo lugar, ainda sem as roupas mas sozinha. Se foi um sonho, nunca o saberemos. Se foi uma recordação, também nunca o saberemos. Poderia ter-se levantado a meio do sono para se dirigir até àquelas águas furtadas e deixar transpirar a luxúria para o corpo de outro. Poderia tê-lo conhecido antes, muito antes, por muitos anos, ou poderiam nunca se ter visto na vida e toda aquela história de amores e fantasias não era mais do que parte do delírio. Nada disso importa, porque o presente e o actual é o que conta. Porque esta é uma mulher sem passado nem futuro, apenas presente, que se quer libertar das suas grilhetas, sejam elas as roupas, seja ela a carne.
Estava ali sozinha. Da casa, emanava um aroma a qualquer coisa frita e um fresco vento que provinha da rua. Vestiu-se descontraidamente, como se sempre se tivesse encontrado nua em toda a sua vida mas tivesse subitamente frio. E tinha. Esquecera-se de que se encontrava num local húmido. Esquecera-se de tanta cosia que, por vezes, o presente ia de arrasto. Tudo isto lhe parecia natural; não queria atrever-se a decifrar as complexidades da mente, fossem reflexos de defesa, fossem induções de negação, fossem flexões de existência. Tudo isso era mais grilhetas, isso de se viver preso a interpretações. Mais valia que se vivesse no desconhecido. Como ele lho dissera, ela era inédita – e que tudo fosse inédito. A espera conduz apenas ao desespero e à ânsia. Por vezes, à desilusão. Poder-se-á que está imune. Nada a poderá desiludir.

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