Abstracção #2

01:21

Acima daquele lugar, havia um terraço. Ela gostava de terraços. Mais próximos do céu e longe do chão. Uma queda seria fatal, mas a ascenção angélica seria rápida. As estrelas estavam mais perto e a chuva caía mais facilmente, mas estrelas não se viam. Maior sinal de que estava viva não existia. Os pensamentos eram os primeiros a cair. A sensação de risco é que era fantástica. Gostava dela como de um vício. Sentou-se no parapeito de pernas estendidas, a abanarem contra a parede, ali de contraste com o chão mesmo lá abaixo. Um jeitinho e espatifava-se, mas dava-lhe adrenalina sabê-lo. Corria-lhe na pele a vontade de estar viva ao arriscar-se à morte. Em anjos, não acreditava, muito menos em infernos subterrâneos. Esse, vivia no intermédio. Debaixo do chão era só larvas e terra e ossos e fósseis – história por descobrir, talvez, enterrada, como lhe convém. Acima, era aviões, pássaros a enfiarem-se-lhe pelas turbinas para os espatifar e nuvens. Cosmos, estrelas, poeiras, galáxias, nublosas, a lua, planetas, mais luas, mais sóis, coisas que nem se sabia bem onde começavam e onde acabavam. Melhor assim. Mais valia que pontas soltas existissem no universo – nos universos, aliás, o dos vivos e dos mortos.
As pernas a abanarem davam-lhe arrepios de excitação no corpo. As unhas raspavam no betão como quem esconde qualquer vontade, mesmo não sabendo qual era. Ele apareceu pouco tempo depois. Trazia dois copos a transbordarem de vinho, como ela gostava, para não se perder tempo a voltar atrás para encher. Copos grandes, não dos típicos de vinho. Vidro grosso, quase inquebrável nos a-fazeres domésticos. E as pernas a abanarem, pareciam mais próximas do chão. Um jeitinho inconveniente, e lá se ia, a deslizar por ali abaixo até o corpo se encher de ar da queda e se esborrachar todo lá em baixo. Rebentaria antes de atingir o chão. A adrenalina dava-lhe forças para se manter quieta, mas abanar as pernas era relembrança do risco. A vida corre mais intensa quando se fareja a iminência de morte. Abaixo, larvas; acima, cosmos. Não há espaço nos extra-mundos para demónios e anjos. Esses, viviam entre os vivos.
Bebeu dois longos, longuíssimos, goles do vinho, até a garganta lhe arder. E depois, começou a falar: Sabes, disse, que quando uma pessoa se atira da ponte Golden Gate, chega a um ponto em que se arrepende. A queda é tão longa e demorada que, a maioria, arrepende-se e decide viver. Aliás, não decide, apercebe-se apenas que aquilo foi um erro. Mas já vai tarde. Já está no ar, a brincar aos aeroplanos, a atirar-se de cabeça para o rio que a vai matar com o impacto. Mas imagina só. Estar agarrado aos postes, os pés as escorregarem, embrulhado nas nuvens porque estás lá tão alto, a pensar que queres morrer. Não há nada que te prenda ao mundo. Provavelmente, perdeste tudo. Dinheiro, amigos, família, a casa, um animal de estimação. Principalmente, um animal de estimação, custa mais perdê-lo a ele do que aos outros. Às vezes, mais vale que a família se vá. O que é? Achas maldoso? Não é. Nem sempre, de qualquer forma. E uma casa é uma casa, dinheiro é dinheiro, que é que interessa? Está bem, está bem, neste mundo interessa, claro, mas este mundo está talhado para que interesse, para que forme a necessidade de tu teres dinheiro e uma casa. Planta notas que não nasce dinheiro, e uma árvore pode abrigar-te mais do que uma casa de um prédio barulhento onde o vizinho de cima de provocou uma infiltração e o de baixo dá porrada na mulher. É necessidade porque se impôs, não achas? E para quê ter, diz-me lá? Mais vale que não se tenha. O que não conhecemos, não nos faz falta. Alguma vez arrumaste sacos ou caixotes onde estavam coisas que não sabias o que eram? Aposto que os abriste e investigaste ao pormenor o que ali estava. Fizeste mal. Os caixotes lá devem ter estado numa varanda, já roídos de rataria e baratedo, e tu mesmo assim foste abrir e ver o que tinha. Para quê? Fez-te alguma falta, este tempo todo? Deitava-lo todo para o lixo, e acabou-se. E tu dizes: mas eu podia dá-lo a alguém. Dá o que conheces, é melhor. O que não conheces não interessa a ninguém. Dá o que já possuis a quem precisa e liberta-te tu do demasiado que tens. Os necessitados agradecem e o mercado livre também. Fomentas os dois. Fomentas o consumismo de um lado e a caridade de outro. E tu, ficas livre. Toda a gente ganha.
Mas estou para aqui a desviar-me. Aliás, desviei-me. Estava a dizer, porque fomos todos condicionados a necessitar indubitavelmente destas coisas, se as perdemos, sai-nos caro para a cabeça. A saúde é assim, principalmente a mental. E depois, provavelmente, terás um passado qualquer traumático que te empurrou para ali. A tua vida deve ter sido uma grande merda para te queres matar, sem ofensa. É assim. Somos espécimes triangulados, sabes? Existe nós, ou eu, ou o individual, um gajo só; e existe uma sociedade. Imagina que és um quadrado e a sociedade é um triângulo, e a vida, toda ela, é daqueles brinquedos para os bebés para encaixares as formas nos orifícios certos. Tu és um quadrado e a sociedade é um triângulo, não cabes, claro está. E no meio, está alguém que te vai delapidar, que te vai moldar para caberes na sociedade. Entretanto, o triângulo tem três lados e o quadrado tem quatro. E tu perdeste um lado para te encaixares. Perdeste qualquer coisa em prol da tua existência em comunidade. Ora que se foda a comunidade, não achas? Trepa uma montanha, vive debaixo de um carvalho e observa a comunidade à distância. Quando percebes como cresce o carvalho, de que maneira as raízes se enrolam na terra, como e onde é que vão buscar a água para sobreviver mesmo sem haver alguém que o regue, quando percebes porque é que chove e o sol brilha, e porque é que os dois são absolutamente necessários – enfim, quando percebes essas coisas todas que fazem a natureza funcionar muitíssimo melhor sem o homem, percebes que a comunidade é uma valente merda. Aqui estamos, a cortar lados a mais dos quadros para caberem num triângulo, e no meio, uma pessoa que segura a serra e te muda de um lado para o outro. E parece-te tudo muito bem, até subires à montanha e veres de longe. Quando desces, és outro. Para a comunidade, és louco, para ti próprio, és sábio. Um asceta. Pois muda-te, não há espaço para ti. Um contra um milhão é um número desencorajador, não achas?
Agora, lá estás tu, em cima da Golden Gate, a pensar que a tua vida é uma merda, que és uma formiga que foi pisada e não vale nada, que não fazes diferença qualquer à comunidade, se calhar até acreditas que és nocivo. Estás mesmo firme disso. Queres morrer. A vida não te vale de nada. É agridoce. Aliás, esquece isso – é azedo como tudo. E lanças-te. Assim, tão facilmente. É muito fácil fazer-se uma coisa destas quando se está preso no desespero, sabias? Acredita-se facilmente que não valemos de nada porque o enredo em nosso torno nos diz isso. É isto que o homem asceta percebeu quando desceu da montanha, ou do raio que a parta. Que todos nós vivemos presos ao exterior. O que nós somos é um espelhar da percepção exterior e isso está errado. Está errado porque não existe uma percepção única e pura, porque o mundo é talhado à base de diversas percepções que se conjugam numa barafunda de bandalhos que tentam sobrepor a sua própria percepção à dos outros. Estamos todos ligados por um fio que tecemos uns nos outros, nós próprios. Imagina que Ariadne tinha atado o cordel a si e a Teseu… Ou foi isso mesmo que ela fez? Não interessa, bom: imagina que ele não atravessava um labirinto. Só tinha de ir em frente. Atrás, lá estava a boa da Ariadne a torcer por ele e, ao fundo, o minotauro. Os gritos de força da Ariadne convenciam Teseu, está caro, mas assim que ele vê o minotauro borra-se todo. Afinal, não consegue derrotar aquele monstro, caramba, é só um e até é bem pequeno, se calhar até sofre de artrose e aquela espada custa-lhe a pegar, o escudo então é uma dor do caraças, eram feitos de couro, madeira e alguns até de metal, aquilo havia de pesar… Ai, não interessa! Mas Teseu, mesmo assim, atira-se para o minotauro porque, face aos gritos de Ariadne, não a pode deixar mal. Ela agora acredita que ele é macho a sério e isso seria desapontante para a donzela, não é?
Por isso, já agora, é que o homem está a cair da Golden Gate até ao rio. Porque houve uma qualquer Ariadne que lhe gritava nas costas que fosse qualquer coisa que ele não era – um triângulo, pois. Quando ele era, na verdade, um quadrado. Mas a queda é longa, afinal, aquela merda é alta… E quando salta, qualquer coisa o faz pensar rapidamente sobre o assunto e ele muda de ideias. Pensa bem: ele vai sentir o impacto, há-de partir uma quantidade de ossos, se o corpo não rebentar do ar que está para ali a inalar durante a queda. Afogar-se-á, por fim. Mas o tempo que vai demorar a morrer é demasiado. Eu acho que o que ele se apercebe é que recorreu ao método errado. Que, aliás, percebeu que não quer morrer, antes quer que a dor acabe, que as coisas mudem… E talvez tenha tido uma pequena consciência de uma ainda mais pequena possibilidade de, de facto, as coisas mudarem no futuro. Mas agora, já vai tarde. O método que ele escolheu para pôr termo à dor foi através de uma morte lenta e dolorosa. A meio da queda, está ele a ver o rio a aproximar-se e está a pensar que, afinal, quer sobreviver. Lá se enrosca a meio da queda para se amparar, para evitar morrer. Com sorte, não parte nenhum osso e há-de nadar, se souber nadar. Com sorte, cai de pé, ou qualquer coisa, e o impacto é menos bruto. Com sorte, até sobrevive. Se sobreviver, sai de lá um homem novo. Se não, morre lentamente, e mais duramente por se ter apercebido a meio da queda que, afinal, não quer morrer.
Parou de falar. Abaixo de si, o chão parecia mais próximo, mas não estava. Ela não tinha vontade de morrer; pelo contrário – tinha cada vez mais vontade de viver. Por isso é que ali estavam aquelas pernas a abanar, o chão cada vez mais ilusoriamente perto, o perigo a resvalar no parapeito de um terraço de um prédio de nove andares. O vinho escorreu, escorreu quente no pleno do frio. Abaixo, o chão, e com ele, as larvas, a terra, tudo o que constituía o prescindível. Talvez até o passado. O passado estava longe, escondido. Não existia anjos nem demónios, apenas uma re-interpretação do real denominada de etiquetas vernáculas, ou antes, palavras que se haviam banalizado.
E agora, pensa ela, abanando uma vez mais os pés. Abana ainda mais os pés quando sente que perde alguma fracção da sua vida. Se está aborrecida, abana os pés. Estão ambos em silêncio e apenas o vinho os preenche, apenas o vinho quente naquela noite húmida. Olha para ele. Não o consegue descrever. Tem rosto; tem olhos da sua cor própria, tem nariz, tem boca, tem pele de tom também seu, tem cabelos de formato que lhe competem de acordo com a genética que lhe está impressa e a forma que adquiriu dos progenitores. Não interessa verdadeiramente o seu aspecto, é apenas um aspecto. Ela nunca o conheceu até àquele momento e ainda não conhece. Não quer conhecer. Que permaneça assim, uma carcaça de moléculas, átomos e matéria interna e externa que se transcende no uso do mecanismo do corpo e não na carcaça. Na mente, nos gestos, no olhar, nas sinapses que emite o cérebro até às mãos que rodopiam o copo na mão a transbordar de vinho.
Bebe pouco. Está contemplativo. Ela sabe – de alguma forma, sabe – que ele pensa nas suas palavras. Pairam-lhe no espírito, tenta desfazê-las. Compreende-as porque lhe foram ditas na sua língua. Nenhuma lhe é insignificante. Conhece-as, sabe os seus significados, lidou com elas toda a vida, algumas mais tardiamente. Teve a sorte de saber quem era aquele Teseu e aquela Ariadne por amor à analogia. Mas a língua era uma mistura de sinais que se dissipavam no ar. Era percebida da sua própria forma. Havia ali índex e havia ali analogias e metáforas que demoravam a desfazer. A língua era um misto de sensações e percepções que algures na transmissão se tornava difusa, misturava, e tornava uma coisa diferente ou semelhante, ou mesmo igual, mas quem o poderia dizer, ao receptor. Ele parava para pensar nas palavras. Elas assentavam como gotas da chuva que resvalam as ondas da maré alta, embatendo em chicotadas nas vagas que se precipitam para rochas negras. São minúsculas face ao grosso, à massa, com que se deparam. Por isso, necessitam assentar, necessitam de tempo para encontrar a sua significância. E só passado algum tempo, elas adquirem um tom geral, um significado unânime, dir-se-ia colectivo, caem como torrente de tempestade sobre um mar agora já pleno.
Ele disse: uma vez, vi um homem atirar-se de um quinto andar. Ficou muito tempo pendurado na janela, com os pés a resvalarem o parapeito, agarrado às armações da varanda, desesperado. Via-se que não sabia se o havia de fazer ou não. Lá em baixo, as pessoas juntaram-se num turismo mórbido. Cobriam os olhos e olhavam lá para cima como aqueles que vão ao teatro e levam os binóculos para ver melhor ao longe. Era tudo um espectáculo, para eles. Acho que ninguém pensou que estava a olhar para um homem que se queria matar, pensaram que estavam a ver um homem pendurado numa varanda e isso tinha interesse porque quebrava qualquer forma de rotina, fosse qual fosse. E então, ele lançou-se, claro. Eu não vi a queda, foi demasiado rápida. Quando olhei, havia um corpo todo desfeito, a perna estava torcida que era uma coisa horrível, e sangue a escorrer por todo o lado. E subitamente, aqueles que olhavam para o alto curiosos ficaram horrorizados. Já não protegiam os olhos do sol, protegiam os olhos daquilo que acontecera, da morte que haviam testemunhado. Algumas pessoas ficaram brancas, tiveram de se sentar, ou entraram num café a correr a pedir água com açúcar porque estavam à beira de desfalecerem. Outras acorreram a ver se estava vivo. Desconfio que algumas só queriam mesmo ver a morte de perto. Houve quem se atrevsse a tocá-lo. Sim, atrever, porque testemunhar a morte é uma coisa já de si demasiado inédita, imagina tocar. Houve quem tivesse tal atrevimento. Se calhar, nesse dia, chegaram a casa e contaram à família: hoje vi homem morrer e toquei-lhe. E que espécie de gratificação tiraram daí? Se calhar, aprenderam ao que sabe, se parece, ao que se sente da morte. Tocaram um morto e decidiram que não queriam morrer, que queriam vivier para sempre no seu próprio tempo finito. Calculo que tenham vivido.
Ele parou de falar. Ela olhou para ele. Ainda não o conseguia definir. Perguntou: se eu caísse daqui e morresse, exactamente da mesma forma, serias capaz de me tocar depois de morta?
Ele respondeu: mas nem te toquei viva.
Voltou a abanar os pés; o silêncio caiu. O vinho continuava quente, embora refreasse. Ainda lhe queimava a garganta. Perguntou-lhe: quem és tu?
Ele respondeu: tu conheces-me.
O céu estava coberto de nuvens, e ela sentiu vontade de ver as estrelas. Mas não haveria estrelas naquela noite. Pensou: nunca vi estrelas; mas já as tinha visto, claro, quem nunca vira estrelas? Mas estavam também elas enterradas, longe dali, talvez abaixo do chão, com as larvas e a terra. Faziam parte do passado que abandonara, do seu eu deixado para trás numa carta selada (qual carta?) que ficara numa mesa de cabeceira, ao lado de uma cama que não sabia quantas pessoas tivera no leito até a ater abandonado – ou depois de a ter abandonado? Queria apenas ver estrelas. Sabia o que eram, mas ainda assim nunca as vira. Queria vê-las.
Ela disse: conheço-te. Percorres o caminho até à fonte e recolhes a água, mas tomas um desvio diferente para encontrares outras fontes. Às vezes, o balde não está cheio, calculas metricamente o necessário e percorres o teu caminho de acordo com as tuas pretenções, apenas. Consomes o que te é necessário, mas sorves de cada gota com mais vontade e delícia do que aqueles que carregam baldes a transbordar de água e percorrem o mesmo trilho em linha recta todos os dias. Algures, nas tuas caminhadas, creio que tenhas encontrado algum transeunte. Muitos transeuntes. Não traziam baldes e tu deste-lhes o teu, e mesmo assim, não passaste sede porque continuaste a respirar. És. Existes. Vês, com os olhos e a mente.
Ele bebeu, sorriu e disse: libertaste-me.
Não, disse ela, rindo. Todos nos libertamos, mais cedo ou mais tarde, se entretanto não nos tivermos empinado numa ponte, saltado e percebido a meio da queda que não queremos morrer. Até lá, temos sempre a possibilidade de nos libertarmos. Não ouviste nada do que te disse? A sociedade é uma triangulação. Tu não és um triângulo nem um quadrado. Acho que és… Um hexágono. Tens muitos lados e todos te são preciosos. Mas em tempos, foste um octógono. Talvez até mesmo um quadrado. Abriste-te, criaste mais lados. Essa foi a tua libertação. Podias ter sido um quadrado mais pequeno ou simplesmente um rectângulo e ter-te espremido no espaço do quadrado. Ias então pensar que algo estava errado contigo, mas não. Percebeste que algo estava errado com o colectivo, não contigo, e libertaste-te a ti próprio. A nossa libertação vem sempre de dentro, nunca de fora. É um acto de força que não julgamos possuir até acontecer. Eu não fiz nada. Aliás, tudo o que fiz foi… Existir, creio. Ouvi-te, li as tuas palavras, percebi-te. Respirei-te. Respiro-te.
E vês-me, acrescentou ele.
E vejo-te, concluiu ela. Fez uma pausa. Acrescentou: mas não te conheço inteiramente. Há qualquer coisa que falta.
Não, respondeu ele. Não estava sentado como ela, não à beira do parapeito, não com as pernas esticadas, não arriscando um ligeiro desvio que arriscasse a morte. Ele vivia na segurança. Não necessitava a adrenalina. Não, repetiu. Não falta nada. Tens os pedaços de mim, cabe a ti roganizá-los como te convém.
Mas como me convém, interpelou ela, pode não ser quem tu és. E se eu te construo como não és? Não seria muito diferente de eu te transformar num quadrado, simplesmente seria uma ilusão. E eu viveria para sempre a acreditar que eras um quadrado, iludida.
Mas não o farás, respondeu ele.
Como o sabes?
Também não és um quadrado.
Ela abanou as pernas. E o que sou, perguntou.
És um círculo. Ele olhou-a. Ela teve a sensação que lhe decifrou a cor dos olhos, mas não podia ter a certeza. Havia luz neles, pelo menos; um brilho. Poderia ser deslumbre, deleite, qualquer coisa. Qualquer coisa interna como tão banalmente é descrito nos livros que as pessoas se incendeiam quando se emocionam com qualquer coisa. Aquilo não era emoção, contudo, era sinceridade. Eu vejo-te, disse ele. Vejo-te porque respiras.
Estavas à minha espera, disse ela, mas não sabia dizer se aquilo fora uma pergunta ou uma afirmação. Talvez não fosse nenhuma. Um pensamento que lá encontrara o seu caminho através das cordas vocais, os lábios, e lá se escapara, de alguma forma, verbalizando-se a si mesmo. Às vezes, os pensamentos ganham vida e saem, não se controlam. Os cosmos que decidissem se era uma pergunta ou não. Se ele permanecesse em silêncio, seria uma afirmação. Caso contrário, haveria qualquer esclarecimento. Não podia sequer saber com que medida a esperara, porque haveria de esperar por si, nada os levara a esperar um por o outro, não tinham nada para esperar – quem eram?, como se conheciam?, como haviam chegado até ali?
Não estava à espera, respondeu ele. Se esperasse, isso poderia conduzir-me à exaustão. Mais vale não esperarmos. O inesperado é mais agradável. Sempre me foste inesperada, e agora ainda mais, aqui, em carne e osso, em forma e matéria. Mas eu já sabia como eras.
Ela riu. Não rias, interpelou ele. Não falo do teu rosto, do teu cabelo, das cores que constroem a tua paleta geral… Falo de quem és em matéria. As palavras disseram-mo. Já nos conhecíamos antes. Isto é apenas o terminar de um contrato. Chegámos ao fim.
Ou talvez tenhamos chegado a um início, disse ela.
Tu, sim, interveio ele, definitivamente que chegaste ao início. Por isso é que és um círculo.
Mas existe um corpo, disse ela. Vês-me. Como é ele?
É apenas um corpo, para mim. Ele existe porque precisas de te mover, de existir em matéria por entre nós. Porque hei-de dar importância à sua forma? Vejo-te, mas não te vejo, ao mesmo tempo.
Vês o que te interessa, disse ela.
E o que interessa é o importante, respondeu ele.

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