A Fonte

01:02

Começara por alturas da primavera. Na altura, não havia calor abrasador, não havia sol radiante, apenas brisas suaves e claridades matinais. Sentavam-se no café as tardes todas. Na esplanada. A fonte jorrava; barulhenta, quase incómoda. Primeiro, os casacos em volta dos seus corpos. Às vezes, despiam-nos colocava-nos nas costas das cadeiras. A brisa soprava. Falavam alto, porque não se conseguiam ouvir claramente com a fonte ensurdecedora ao seu lado. Eram muitos; eram seis, sete. Sentavam-se na esplanada do café toda a tarde, olhando as pessoas a sua volta. Olhavam, conversavam. Ás vezes, riam. Alto, sempre alto, porque a fonte não lhes permitia ouvir claramente. Amigos que ali se juntaram e ali conheceram amigos novos. Clientes habituais. De um simples pedido a um bom dia caloroso. Juntavam-se, e sentados na esplanada, deixavam que o tempo fluísse. Primeiro, horas; depois, dias. Por fim, o tempo correu inalcançável. E a fonte jorrava.
Com o passar do tempo, o número reduziam-se. Eram muitos; eram seis, sete – passaram a cinco, quatro. As tardes eram mais curtas. O café tinha mais gente, menos deles era aquele grupo. A fonte jorrava. E eles estudavam à beira da fonte, porque o seu barulho os ajudava a concentrar. Às vezes, quando desligavam a fonte, ficavam a conversar baixinho, mas eram apenas cinco, quatro. Eram menos; eram poucos. A fonte jorrava, como candelabro luminoso, sempre permanecia. Os estudos correram, o tempo passou. O calor intensificou-se. Os casacos desapareceram das costas das cadeiras, passaram a ficar em casa, nos armários. As saias surgiram, mangas encurtaram. Leques de papel refrescavam-nos. A fonte refrescava-os, ensurdecia-os. Jorrava. O tempo passou, e com ele, os estudos passaram. As pessoas passaram, desvaneciam com o tempo. Eram quatro. Eram três. Reduziam. Os livros fecharam-se. E a fonte jorrava.
Eram muitos, muitos; eram seis ou sete. Passaram a dois, apenas dois. Ele e ela. Almas perdidas, meras assombrações de uma esplanada de café à beira de uma fonte ensurdecedora. Eram estranhos, depois amantes. Enquanto isso, a fonte jorrava. Tocavam-se inocentemente. E depois, os beijos. E o tempo passava, lento. As horas decorriam, até à noite, muito noite, cada vez mais noite. As pessoas à sua volta desvaneciam, sobravam eles. Meros fantasmas desse lugar que tanto falara, um dia. Eles deixarams-se ficar sentados na esplanada do café, ao lado da fonte ensurdecedora. Falavam alto, beijavam alto, porque a fonte não os deixava ouvir. Um dia, julgaram que se amavam. E as luzes apagaram-se, a fonte desligou-se. O mundo parou de girar à sua volta. Não havia a fonte ensurdecedora, e ela podia dizer-lhe coisas bonitas. Não havia gente a olhar, e ele podia tocar-lhe como quisesse. Um dia, o mundo parou. E mesmo que por segundos, não tardou a que a fonte jorrasse de novo. E de novo ensurdeceu. De novo refrescou. De novo foi fonte.
Depois, ele foi-se embora. Ficou ela. Mas que sobra de um lugar onde não há mais nada, que não eu e as memórias, pensou. E também ela se foi embora. Então, o café ficou vazio. As cadeiras eram ocupadas por novas pessoas. A fonte intercalava outras conversas. Já não refrescava, já não chateava, só jorrava a sua água cintilante debaixo do sol abrasador de verão. E depois o verão passou. E o café fechou. As cadeiras amontoadas na esplanada, as luzes desligadas, os restos de pedaços de papel ainda agarrados aos vidros, o pó acumulado nas bancadas, as cadeias sujas pela chuva e pelo vento e pelo pó. Ela, que sobrara, deparou-se com um local assombrado, onde nada restava. Tudo sucumbira. Do início de uma boa época, ao final. Uma dimensão obscura que lhe sugara toda a felicidade e o sumo da vida. Eram muitos; eram seis, sete. Eram dois, apenas dois; dois que permaneceram apesar da fonte, que jorrava. Até que nem os dois resistiram. Até que os que sobraram sucumbiram a essa dimensão obscura. Até que apenas sobrou uma casa de vidro abandonada. Um local preenchido de fantasmas. Meros fantasmas desse lugar que tanto falara, um dia. Até que não sobrou nada, se não a fonte. E o tempo correra, moldara as pessoas, mudara os factos, zombara de todos nós, e ali ela permanecia. E a fonte jorrava, jorrava. E a fonte transcendia de água cristalina.
E a fonte foi tudo o que sobrou.

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