Abstracção #4

01:26

Do outro lado da estrada, estava um homem que conhecia e que se dirigia até ela. Sorria em disposição plena da sua recpção, mas como sempre, existia-lhe no olhar umamelancolia adjacente, breve e ríspida, um bilho rápido de que relampeja no desejo, talvez, de ser encontrado. Ela vira-lho sempre, mas só mais tarde concluiria de que se tratava sem, contudo, saber em conclusão plena.
Aquele já era outro lugar – ou fora, ou ainda era, ou talvez nunca tivesse sido o espectro da imaginação transformava-a numa panóplia de delírios agradáveis. Sim, aquele pelo menos era agradável. Estava ali, de pé, num terreno arenoso onde algumas construções se erguiam atrás de si. Não se atrevia a voltar as costas para as olhar, se não estivessem ali, isso significava que afinal imaginava ou o lugar era, afinal, outro, e não se podia permitir a fazer essa desfeita. Viveria na ilusão se tivesse de ser
Cheira a terra molhada mesmo que não houvesse ali terra. E à borracha dos pneus que giravam sobre o pavimento húmido. E a comdia grelhada e condimentada que provinha de um restaurante ali perto. Ele aproximou-se, ainda a sorrir nas mesmas condições e preceitos que anteriormente lhe denotara, parou e cumprimentou-a com toda acordialidade que distância que não tinham se impunha quando o afastamento recente ditava a necessidade de ser relembrada para que ele permanecesse ali, como uma barreira entre ambos.
Não tinham nada para falar, mas falavam de tudo, que era eles próprios. Caminhando pelas ruas, disfarçaram o vazio que ambos eram ao falar apenas de si, ao cuspir apenas aquilo que tinham dentro de si próprios porque nada mais existia em torno de ambos. Caminharam por entre as palavras que se misturava com as dos outros, ainda que pouca gente houvesse na rua. Os casais vazios, comprometidos ou não, vivem assim, da ilusão projectada de que tudo é delicioso quando nada existe nas suas palavras que não provenha de si mesmos. Ambos cuspiam o ego numa batalha de rendição, mas ninguém se rendia. Ninguém questionava ninguém. Nenhum deles colocava qualquer pergunta que interessasse a respeito do outro. Esperava que terminassa para induzir uma frase começada por pois eu e prosseguir com a espadada de egos infatuados.
Ainda assim, riam. Porque a mentira é melhor que a verdade, e a verdade, essa, nenhum deles a via porque estavam presos na ilusão. Caminhando e falando, também riam, para acompanhar os passos e adocicar a mentira para que se apresentasse ainda mais como verdade que não era. Uma droga que agravava o delírio. Sabia-lhes bem e havia ressaca no organismo quando ela terminava.
Que espécie de distância existe, pensava. Que falta esta de explicação! Alguém lhe dissera: amar é quando não consegues explicar os sentimentos. Não as havia, de facto, as não os havendo, também não existia qualquer espécie de conversor oficial desse sentimentalismo para o que oficialmente sentia em si por fim a compreendê-lo. Nada. Confusão, vazio, desejo, delírio. Mas aquele muro não estava ali para separar. Vivia separados, viviam distantes, ao cuspirem apenas histórias acerca de si próprios, apenas a confrontarem-se com os próprios egos, mas em vez de permitirem que aquele muro os impedisse de se verem, empoleiravam-se no  parapeito e espreitavam-se. Talvez lhes escapasse um beijo ocasionalmente; em breve, seria isso mesmo.
As ruas desertificaram rapidamente. Não era para mais. Numa ilusão, os extras desaparecem; o delírio passa a borracha em tudo aquilo que está a mais, se for preciso ainda acrescenta um adorno ou dois para agradar mais à mente. A mente a viver na mentira, mergulha num banho de ácido delírio. Quando terminar, o corpo ressacará; mas até lá, tem de existir o beijo e a carne para então vir o confrontar da mentira, o silêncio entre ambos que dirá: não somos nada, não temos nada, vou-me esconder neste muro e tu farás o mesmo, nunca mais nos veremos.
Uma porta abriu-se subitamente e já não havia nada de desagradável, apenas a perpetuação do delírio. O espaço era pequeno e abafado, como convinha. Um sofá de tecido meio rasgado, comprido, largo o suficiente, de cor verde escura. O chão de madeira rangia, aquilo era umas águas-furtadas, ali estava o tecto coberto de vigas de madeira a descer em duas empenas sobre as suas cabeças numa claustrofobia que teria de ser pagada com a carne e o mergulhar da mente no delírio. As roupas caíram no chão em mergulho esperado, entravam também no devaneio e caíam num sargaço constante e instável. Agora, estavam perdidos. Por então, o muro desaparecera. Alguém o galgara. Quando chegassem ao fim, lá concluiriam qual delesteria sido. Por agora, era apenas o mruo que desaparecia de debaixo dos corpos empinados para se verem.
Os corpos que agora estavam nus acariciavam-se e ondulavam sobre aquele sofá roto. Um sofá roto é sempre uma coisa bela num espaço de madeira bafiento onde se ouver térmitas a remoer a madeira. Com corpos nus, a beleza passa a existir, porque o nu embeleza o interior bolorento, até depressivo, escuro, sorumbático, como um rosto em tristeza permanente, de boca recurvada à buldogue. Os corpos nus são a luz que aquele lugar tem enquanto lá fora cai a noite. Só um candeeiro está aceso, próximo de ambos. Através da pequena janela redonda – que coisa estranha – vêem o mar de luzes da cidade, cor-de-laranja, amarelas, vermelhas a piscar, intermitentemente azuis e amarelas. Não havia estrelas no céu, apenas um risoc miserável de lua que era da cor daqueles corpos. Moviam-se em ondulação consagrada ao ritmo cambaleante daquele ofgear uníssono. De amor, não tinha nada, porque talvez o conseguissem descrever. O que tinha era desespero. Agora, achavam que tinham sido ambos a saltar o muro e cada um acreditava viver do outro lado; delirantes, delirantes.
A droga sempre passa,d eixa o corpo sacudido em ressaca. Ainda há tempo para se prepararem antes dela chegar. Ao pôr um termo à ondulação da pele e o unificar sangrento da carne, param para respirar e sentirem agora o sabor do suor que lhes escorre os poros, como seiva de rosas que transborda o derradeiro aroma em prenúncio de qualquer tragédia. A tragédia a consciência que aí há-de vir. Por enquanto, deleitam-se nas sobras do pecado de se renderem daquela forma a uma falsidade colossal. A ilusão lá vai desaparecendo a pouco e pouco. Aqueles corpos nus já não embelezam o interior. Em breve, haverá mesmo nojo. Não quererão saber mais um do outro, quererão apenas enfiar as roupas e despedirem-se, ansiando por um duche que lhes lavará a luxúria para longe da pele, ela será puta e ele será cabrão, assim no maior vernáculo que ao desesperado ocorre. Por enquanto, são amantes romantizados sob uma luz amarela de um candeeiro, num sofá verde roto, dentro de umas águas furtadas onde, se não haverá baratas, haverão ratos, onde os seus corpos nus transmitem beleza ao que naturalmente causaria, de outra forma, horror.
Já se afastaram. Agora, cada um deles está sentado longe do outro, de cabelo a pingar já do banho tomado. Não sentem nada na pele, qualquer formigueiro de excitação fora abandonado, fosse de que forma fosse. A água lava as impurezas, devolve a dignidade aos pecadores, é benta até no cano, se o beatificado quiser a redenção dela, esteja onde estiver. Nasce o sol, acende as luzes matinais num céu incandescente, e ao mesmo tempo, precisamente – mas sem o saber, nunca o saberão – pensão: tivémos um dia a união da mente mas ela foi estragada com a carne. E era verdade. Sabiam isso como regra. Em tempos, haviam sido unos, um só em espírito. Mas cederam à tentação, quebraram a barreira do espírito e penetraram na carne. E o muro erguera-se. E aquelas águas-furtadas seriam para sempre um escape de sexo, apenas essa banalidade desprezível. Ainda que quisessem mais do que isso, estavam condenados. Era inexplicável. Geralmente o amor o é.

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