Abstracção #3

01:24

Desceram quando os copos de vinho terminaram. O interior do quarto ainda era de tons de verde e amarelos, mas já não havia mistério. Sempre o haviam sido, mesmo para ela, que ali entrava pela primeira vez. Tinha a sensação, contudo, que sempre vivera ali. Até conseguia ver as memórias a pairarem-lhe no espírito como projecções imagéticas de um passado inegável – era, afinal, um passado inegável – era o outro passado que era negável, não este, imaginário. Um grupo de pessoas, ali, sentados naquela carpete avermelhada, a fumar e a beber. A conversar por entre risos e a rir por entre conversas. As imagens distorcidas, rodopiando, luzes vivazes, um colorido inebriante, tinham mascado cogumelos e sentiam-se felizes, para sempre felizes, uma eternidade finita, mas plena de felicidade. Aí, os corpos eram mais do que veículos, eram autênticos instrumentos de manobra, um dom que podiam manejar e controlar de acordo com as suas únicas expectativas e desejos. Estavam sem roupas, porque essas eram as verdadeiras grilhetas, as correntes que lhes prendiam a metafísica à existência soberba do espírito. Arrancavam-nas por entre risos e cogumelos que mascavam. Eram livres no círculo que abriam dentro do quadrado, mas cada um era uma forma diferente. Todos eram polígonos.
Agora, via essas memórias que não eram suas, mas cria-as. Talvez lhe tivessem sido contadas no passado e ela apropriara-se das suas imagens em jeito de desespero de adaptação, inconsciente. Decidiram-se a dormir juntos, na mesma cama, porque duas carcaças não comprometiam a existência havia muito unida entre si da mente, do espírito. O corpo que agisse como quisesse e bem entendesse, desde que o espírito continuasse a encabeçar.
Deitaram-se a meia-luz. Uma meia-luz que atravessava as janelas, ainda amarela, ainda torrada e sumida, com um quê de melancólico. De braços debaixo da nuca, ela pensou que uma luz melancólica era tão certa quanto um rosto melancólico, que as mágoas da vida se espirram dos olhos para fora, da boca para fora – da carcaça para fora – e se projectam nas coisas existentes, colavam-se às suas formas gerais e distorciam-nas, transformavam-nas em outras coisas completamente diferentes. Aquela luz era melancólica mesmo depois de piscar os olhos uma quantidade de vezes. Continuava a ser melancólica.
Nenhum deles dormia, permaneciam assim, deitados e em silêncio. Estavam sem roupas porque se libertaram das últimas raízes, acima de tudo as dela, e a carcaça também necessita a libertação para a sua existência plena independente do espírito, talvez ainda submetida a ele, que convinha não perder as estribeiras dos membros. Permaneceram em silêncio por muito tempo. O silêncio não era incómodo, era um espaço onde não havia a necessidade de palavras, falava por si sem dizer absolutamente nada. Ou antes, não falava de todo, permanecia assim. A ausência de sons, por vezes, era boa, mas aquela ausência apenas trazia ao de cima outros sons, e eram esses sons que procuravam. Átomos dispersos de outras existências. A certeza de que não estavam sozinhos. 
Corpos eram corpos, afinal, eos seus cortnos, o que os definia, estava para lá do alcance de cada um deles. Prenderem-se à carne era tão desagradável como prenderem-se às caixas de coisas do passado corroídas e meio comidas por ratos, esquecidas na varanda. O homem do topo da montanha que o dissesse, ele próprio se libertara do corpo antes de a descer. Agora permaneciam assim, deitados e despidos, sem qualquer tentação. Não estavam nus – nu era uma palavra demasiado estática, evidente, directa até. Mas havia nela mais intimidade do que parecia, aliás, a nudez, para ambos, ia além da pele, dos ossos, dos músculos, do sangue, das veias, dos tecidos de gordura que os enchia. A nudez já havia muito que tiha sido exposta quando decidiram abrir as mentes ao invés do corpo, de despir preconceitos ao invés das roupas. As roupas vieram depois. Agora, caíam no chão como as grilhetas abandonadas do escravo fugido – libertados de si próprios. Não tinham forma. Não eram nem quadrados nem triângulos, eram forma etéreas, talvez fumo que pairava no ar, talvez duas nuvens, talvez apenas meros espectros, que o decidissem. Talvez até nada.
Ela adormeceu primeiro. Sonhou com uma sala escura, vazia, onde apenas uma ténue, ténue luz avermelhada espreitava através de janelas. Era oblonga, disforme, com um quadro branco ao centro. Filas de mesas brancas riscadas no tampo alinhavam-se no seu comprimento. Atrás, ficavam as janelas, de persianas semicerradas e aquela luz vermelha a espreitar através delas a emitir uma sensibilidade terrorífica, mesmo para si própria. Sentada à mesa, ela sentiu o frio do metal e do toque da madeira. Percebeu que estava nua – sim, pois agora era nudez, não era apenas um corpo despido, livre, pelo contrário, era algo mais – ali estava ela, nua, e ao mesmo tempo, presa na sua própria pele. A porta estava fechada, teve a certeza de que estava trancada sem saber como. No meio daluz, emergindo através dos raiares avermelhados, veio um rosto disforme, oblongo e de nariz adunco, dentes compridos, muito compridos, tinha um sorriso assustador por causa daqueles dentes demasiado grandes, roçavam o lábio debaixo mesmo de boca aberta, eram enormes e afiados, como garras, e brancos, muito brancos, como se quisessem raiar mesmo no escuro. Ria com malícia, por que razão fosse. E ela, nua encollheu-se porque estava nua e aquilo era horrível, porque estava para lá de nua, estava exposta, completamente exposta. À sua frente, por entre os dois braços estendidos sobre a carteira branca, estava um pedaço de papel. Não, não era um pedaço de papel, era uma carta, uma carta que reconheceu porque era a que escrevera ela própria. Mas desta vez, sabia, porque sempre se sabe o que não é contado directamente nos sonhos, a mente antecipa-se sempre, o que está para acontecer; ela sabia que a carta fora escrita para ela – por si própria? Sim, era isso, mas outra ela, talvez – quem?, a que ficara para trás, era isso. Abriu-a. Leu-a. Deu por si a chorar como reacção inédita mas esperada, quase química, porque as palavras tinham sido escritas para que chorasse. Diziam muita coisa, mas diziam também: estás pendurada numa ponte, abaixo está o rio, estás a cair, a cair, a cair, e não consegues parar, vais morrer, vais morrer afogada, partirás o pescoço a meio da queda, torcerás os ossos das pernas, morrerás afogada, paralisada, incapaz de morrer; penduraste-te na ponte e escorregaste, querias morrer e desististe, caíste, vais morrer, estás a cair, a cair, a cair. E à frente, aquele rosto ria, com aqueles dentes enormes, enormíssimos, gigantes, a rasgarem a pele do próprio lábio logo abaixo deles, a roçá-los com brutalidade, o sangue a escorrer da boca, e lentamente a esconder-se nas sombras enquanto o vermelho que trespassava as persinas pairava no ar.
Teve a sensação de que acordara muito tempo depois daquele rosto desaparecer e fechar a carta. Enquanto isso, sentia-se de facto cair, cair eternamente em qualquer coisa, mas não sabia se era a água do rio para onde se atirava ou não. Acordou no impacto. O corpo provocou um espasmo intenso que o despertou a ele também, dormindo a uma distância de um palmo dela, conseguia até sentir-lhe  respiração. E subitamente, estar ali sem as suas roupas parecia assustador, sentia-se exposta demasiado, atormentada pelo próprio corpor que lhe era prisão. Mas essa sensação em breve passaria. Por enquanto, apertava as mantas junto ao pescoço e entalava-as debaixo dos braços, olhando-o atentamente, de olhos muito abertos e a ofegar. E ele podia ver pelo rosto qualquer pânico, desavença da sua cabeça, qualquer desconforto que o sono lhe produzira.
Como se conheceram não interessa, facto é que o foi de dentro para fora e por meio de palavras que falvam mais do que aquele significado estrito que os dicionários dizem acarretar. A ligação do espírito nascera então, sem o corpo a perturbar. E quanto se viram pela primeira vez, nada interferira, não mais do que o que teriam esperado, dominados na mente, no espírito, treinados nas suas formas usuais.
Mas agora, ela acercava-se de uma estranha e súbita tristeza que lhe nascia de dentro, talvez provinda daquele inexplicável sonho. Era uma tristeza que simbolizava uma ausência de algo, e talvez tivesse a ver com qualquer coisa que deixara para trás, mas que agora não se lembrava. Era profunda. Rasgava um abismo dentro de si, através da gordura do corpo, através dos músculos, através da própria pele. Abria-se e sugava-a com força e ela deixava-se dominar porque não a entendia. Esquecia-se que, por muito que o suprimisse na consciência, ainda que se sentasse à beira de parapeitos a abanar as pernas, sentindo a adrenalina a correr-lhe o corpo em sinal de desejo súbito de viver, de noite, era dominada pelo subconsciente, e esse vinha sempre ao de cima, despertava de um lago adormecido, exibindo os dentes arreganhados e apresentando-lhe as verdades que deixava para trás. Dizia-lhe: não me esqueci, finges que te esqueceste, mas não me esqueci. A mentira deixava de ser mentira, era agora uma verdade, mas assim que os olhos abriam, a realidade desaparecia e aquele medo não tinha justificação, não compreendia as imagens nem tão pouco entendia o simbolismo daquele sonho, muito menos que maldita carta era aquela e porque lhe falava de pontes e de morte.
Com a tristeza vem sempre um fio condutor de uma série de sentimentos, bipolares e disformes, sem sentido que se possa ter por lógico, mas não terão de o ser, cada um será como é e de si nasce apenas o que lhe é natural e se permite a si mesmo a sentir. Dela, veio uma subsquente raiva, enquanto fixava o olhar nele, que lhe levava uma mão ao rosto enquanto lhe perguntava o que se passava. O sonho certamente que fora violento. Via-se-lhe no rosto, nas sobrancelhas arqueadas, os olhos ainda esbugalhados, os lábios separados, arquejando, arquejando, soltando pequenos gemidos de susto aqui e ali. Não lhe respondia porque procurava desfazer tudo aquilo na sua mente, mas a incompreensão apenas lhe ditava a raiva. A incapacidade de o entender dizia-lhe ser apenas raiva.
Do que se rasgara dentro de si, havia agora que preencher o vazio, e ele estava ali mesmo precisamente à espera de ser preenchido. A raiva era o primeiro ingrediente, já levando consigo uma pitada de incompreensão. Mal quis acreditar no seguinte, mas era aquilo mesmo que sentia – a luxúria, uma intensa luxúria que lhe trepava as pernas que parecia provir de pena de si própria – que nojo! Apertou mais as roupas contra si, mas enquanto a mão dele tocasse no rosto dela, a luxúria não desapareceria. Transferia-se assim o inédito ao ser estabelecido o primeiro toque de corpo a corpo, como nem ele mesmo se apercebera de que fazia. Para ele, estava simplesmente a chamar por ela, a segurar-lhe o rosto por isso mesmo, a querer certificar-se de que estava tudo bem. Para ela, estava acender as chamas que apagara, a exercer a prática condenável ao seu espírito que era o estabelecimento do primeiro contacto físico.
Afastou-lhe a mão. Estava tudo bem, pois claro que estava tudo bem, tinha de estar tudo bem mesmo que não estivesse, tinha de estar tudo bem mesmo que um movimento ininterrupto de raiva e incómodo crescesse em si, em desespero de apagar a luxúria. Afinal, havia mais em si do que aquilo, a carne era prisão, era prisão pelo menos ainda, ainda eram seres despidos do preconceito a viverem na liberdade da pele, a luxúria não podia vir ainda. Não se conheciam mais do que o interior – percebeu então, talvez tenha sido isso, não o poderia dizer com certeza, ms achou que sim: havia mais para conhecer. Afinal, se o corpo era veículo, tinha de aprender a conduzi-lo. Voltou as costas. Fechou os olhos. Haveria de adormecer, mas não ainda.

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