Gente da Minha terra

05:11

Caía um nevoeiro espesso sobre a cidade. Um nevoeiro envolvente, e tal envolvente era que abraçava a cidade havia dias, dois dias, sem descanso. Estava frio, um frio de corar as faces quando se sai à rua, e esse frio encasacava os habitantes da pequena cidadela em largos sobretudos pretos comprados nos saldos da baixa, ou em longas jaquetas de malha, grossas, com redondos botões a apertarem o bucho das peixeiras e os cinturões disfarçados de lã, sendo nada mais que um velho cordão, a prenderem as barrigas flácidas das idosas. Apenas as jovens pareciam não sentir o frio: os casaquinhos estavam primorosamente decorados, com bonitos alfinetes, fitas coloridas e outros apetrechos, mas qualquer um estremeceria de frio só de as olhar; e eram curtinhos, tão curtinhos que quando a excitação daquela cidadania lhes tingia as rubras faces de um vermelho acusador, lançavam as cabeças descobertas para trás, abanavam os cabelos longos ao sabor do vento, e com os braços alongados com eles, o casaquinhos subia-lhes, exibia as suas delgadas barriguinhas, e eis que surge um brilho metalizado agarrado ao umbigo. E, por vezes, muito embora usassem botinhas de cano alto, as suas pernas esguias espreitavam nuas pelas mini-saias coloridas.
A cidade estava envolvida por um espesso nevoeiro havia dois dias, mas isso não parecia importar os seus habitantes. Pois veja-se: a mulher do cesto de verga continua a vaguear pelas ruas, com o seu lenço sujo a cobrir-lhe os cabelos imundos, vê-se até alguns deles a fugirem-lhe, brancos como a neve; alongam-se-lhe ao longo das faces flácidas, da pele cravada de rugas, dos olhos quase cobertos, das sobrancelhas quase inexistentes, das largas e peludas narinas, por onde o poluído ar encontra o seu caminho até aos brônquios, e assim a mulher tosse; tosse porque vai de saias pelos joelhos e pernas nuas pelas ruas num dia frio como este, tosse porque há muito que não está bem dos pulmões mas recusa-se a ir ao médico, diz que matam os velhos ao invés de os curar, e finalmente, tosse porque se recusa a tomar mais do que um banho por semana.
E, enquanto tosse, passa por ela a senhora das calças pretas, que se encolhe, que se contorce, que franze os lábios e arreganha o nariz, franze os olhos, mete careta, «para lá, velha jarreta», e lá vai ela, de queixo erguido, agarra a sua mala de pele genuína, preta, brilhante, entre as suas unhas muito compridas e muito vermelhas, em cujos dedos poisam anéis de ouro e diamantes; ela vai pelas ruas de botas pretas escondidas sob as calças homónimas, e essas, comprou-as numa bonita boutique da freguesia – mas tem sempre em atenção o uso da palavra boutique – e contrasta com o seu casaco de pêlo de coelho, muito branco, muito genuíno, muito cruel; ela limpa o ombro do sue lindo casaco com um lencinho perfumado de lavanda porque pensa que foi para ali que a mulher tossiu, mas eis que a sua bela bota, a bota preta envernizada, comprada a preço regateado, se prende entre os espaços da pedra da calçada, e a força nula da mulher cede; lá vai ela, a mulher das calças pretas, que é para ver se o preço da vida não lhe sobe à cabeça.
Quem a ajuda a levantar-se é o homem do chapéu, dedicado vizinho, roupa lavada, arranjada, engomada; o seu cheiro a Old Spice é carregado pelo vento, as mulheres da rua sentem-no, «lá vem o homem do chapéu», suspiram elas, e ele tira o chapéu, faz uma vénia à moda antiga, surge-lhe um sorriso muito branco sob o bigode muito bem arranjado e aparado; e então, a ausência do chapéu revela-lhes a monstruosidade: o cabelo cresce-lhe como um halo, embora de santo não tenha nada, e a sua calvície orgulhosa não impressiona ninguém; as mulheres torcem o nariz, viram-lhe as costas, e o homem ajeita o seu lenço ao pescoço, limpa a garganta e segue em frente. Quando agarra no braço da mulher de calças pretas, que ainda há pouco prendeu o salto da sua bonita bota nos intervalos das pedras da calçada, repete o orgulhoso gesto, lá vai o chapéu, lá vem a calvície; o homem do chapéu não gosta da mulher de calças pretas, prefere a sua filha, e a mulher de calças pretas sabe-o; sacode-lhe o braço, «largue-me seu porco», pensa-o, mas não o dia, em vez disso, sorri, sabe que a seguir, o homem vai para o café e sentar-se-á numa mesa ao canto, escondido, de onde poderá observar as pernas bonitas e esguias da vizinha do quinto direito, o alto pescoço, branco e perfumado, da do sétimo esquerdo, tudo filhas de senhoras da sua idade.
Uma delas é a rapariga do brinco azul, e esse mesmo brinco é uma prenda do seu namorado, bom rapaz, mas enfadado da rapariga, vive preso Às suas malhas, quer ver-se livre do estaferno mas não sabe como, que lhe rebenta a moça em lágrimas e gritos, e certa vez, como remédio único para aquele problema, oferece-lhe ele aquele brinco azul, que faz par com outro igual, mas a moça perdeu-o não sabe onde. Quando está no café, está sentada com as amigas, de calçãozinho, pernas longas, torradas pelo sol, esticadas e delicadas, bebe ginger-ale porque a mãe não vê, e repara nos olhos famintos do homem de chapéu, jura que lhe vê um fio de baba a formar-se nos seus lábios frouxos e a colar-se aos pêlos do bigode; dir-lhe-ia a mãe que a culpa é daqueles calçõezinhos curtinhos de ganga, que fazem exibir até a gordura que não possui, costuma pensar, enquanto a filha aperta a carne excessiva em frente ao espelho e se lamenta, mas isso não a impede de balouçar as nádegas firmes na rua, qual galga em pleno Solstício de Verão, à procura do macho perfeito para acasalamento. Mas eis que esta é uma rapariga dura, má quando é preciso, nisso, bem educada pela mãe, e embora provocara os olhos escancarados do homem, não o admite, e levanta-se, atira-lhe com a ginger-ale à cara, «toma lá, meu porco», pensa, mas apenas diz, «seu desavergonhado, eu só tenho dezasseis anos».
E lá vem o homem da camisa bege, que acha que a moça tom toda a razão, e agarra no homem do chapéu pelo colarinho, arrasta-o para fora do café; e aí tem o seu vencedor, qual rainha de Camelot, que este Lancelot é vinte e anos mais velho, mas ela gosta de o provocar. Só não se lembra que o pobre homem é casado, e casamento mais fraco não há, não que as coisas não resultem, mas tem uma mulher que mete medo, um autentico Rambo de saias. E ele, menino de sua mamã, educado nas saias da sua primogénita, aprendeu a não dizer que não às mulheres, e se não lhes faz as vontades todas, entala o rabo entre as pernas, como diz o povo, e foge delas, que já não é a primeira vez que a mulher lhe dá com os instrumentos de cozinha na cabeça, «vai mudar as fraldas ao puto, meu trolha», grita ela, «parece que gostas de viver na merda», e lá vai ele, de cabeça baixa, de ombros tortos e mãos na cabeça a massajarem o galo que não o vai deixar dormir toda a noite, o homem da camisa bege vai mudar as fraldas do miúdo porque a mulher o obrigou.
É que esta mulher é uma coisa fantástica, já conseguiu parir cinco filhos e diz-se prenhe outra vez; mas o mais fantástico de tudo, sussurram as más-línguas aos cantos da cidade, é como consegue uma mulher tão feia ter um casamento e cinco filhos; e é mesmo verdade, que não só é feia, com aqueles olhos espalmados, o esquerdo com estrabismo, olheiras enormes, sobrancelhas de homem, buço por fazer, dentes tortos e mau hálito, como é má e chega mesmo a ser bruta-montes. Este é o tipo de mulher com quem nenhum homem quer casar porque é feia, qual bacalhau seco e congelado, e nem as mulheres se dão com ela porque quando vai ao mercado não diz bom-dia, nem sorri, e leva as crianças todas, e é tudo a roubar fruta, ou tudo aos gritos, ou tudo a correr por todo o lado, que não há quem tenha mão naqueles malvadas crianças. Mas o homem da camisa bege só casara com tal mulher por força da mãe, a quem só lhe interessavam os netinhos, e tanto interessada estava que agora acha-os demasiados, e este homem de valores obedece à sua mãe, afinal, que homem é homem se desrespeita a própria mãe?
Assim são os dias cobertos de nevoeiro na cidadela, cheia de frio, mas parece que o povo não se importa, que nem que chovesse, trovejasse ou viesse aí um dilúvio, colocar-se-iam de joelhos, de mãos coladas erguidas ao céu, o terço a pender-lhes dos dedos tortos, provavelmente chorariam, e gritaria, «reza, filha, que isto é obra de Deus, quem mais?» porque, acima de tudo, as jovens de casacos curtos, a mulher do cesto de verga, a mulher de calças pretas, o homem do chapéu, a rapariga do brinco azul, o homem de camisa bege e a sua mulher horrenda, é tudo gente de valores, ou assim contam quando se cruzam todos nas ruas, com sorrisos de escárnio, sinceros ou não, a exibir os dentes porcos e as gengivites, «somos uma família de grande valor», repetem, e num sussurro pouco intenso, acrescentam, «olhe, quando quiser, vá lá a casa jantar, que fazemos um refugado daqui!»

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