Abstracção #1

01:19

Ficara uma carta na mesa de cabeceira. Mais valeria o método de despedida à antiga, rabiscada pela própria mão em sentimento de intimidade, de quem, por última clemência de qualquer acto cruel, demonstra uma réstia de compaixão. Nas máquinas há distância. Há afastamento. Há frieza e apatia. Uma mão que escreve está sempre ligada por mente e veias a um coração que bate.

Agora, esperava a abertura da carta em pensamentos. Depois de escrita, não haveria maneira de saber a consequência que causaria. Não a queria imaginar. Seria apenas uma carta, agora. A mão assinara em fechamento oficial das palavras de despedida e a cola fora lambida em encerramento definitivo de um episódio da vida. Agora, era máquina, estava separada por um vidro ou ecrã, por uma distância inquebrável. O fim; o começo; um círculo infinito. Talvez ali regressasse, talvez não.

Não interessa onde está, apenas que não é o mesmo lugar onde esteve. Está frio. Veste um casaco insuficiente para a humidade que transpõe a pele e racha os ossos. O cabelo humedece-se com o peso dela. Os dedos estão trémulos, mas apertam as abas das roupas para se proteger. Há uma película brilhante que cobre o alcatrão e o pavimento liso e cinzento. O som de pneus a rodopiar sobre a estrada, os carros a passar, assemelham-se bastante às ondas a girar sobre areia quando fecha os olhos. Poderá imaginar que se encontra num local bem mais agradável, como uma praia – não que o local exacto não seja então agradável, mas qualquer escape atendido às circunstâncias é agradável, seja uma praia, seja uma tempestade a cair sobre rochas. Para quem deixou uma carta selada e escrita à mão sobre uma mesa de cabeceira em sinal de partida, de abandono, de esquecimento – que o decida quem a ler – a visão de um cenário hipotético torna-se uma fuga. A circunstância não pode ser agradável.

Há passos e passos, mas passos há sempre. Há sempre passos assim como há gente que circula por todo o local do mundo. Não atenta aos passos, até gostaria que desaparecessem. Quando os passos que se destinam à sua aproximação se antecipam, não os ouve porque passos sempre existirão e aqueles não são diferentes dos restantes. Pensa nessa hipótese mais agradável do que então. Pensa na fuga que cometeu mas que poderia ter cometido de outra forma, ou para outro lugar, se tivesse essa opção. O desamparo empurrara-a até ali, fosse ele qual fosse. Ali, não era coxa, tinha muletas, tinha suporte, que andasse, que andasse em consonância daqueles milhares, ou centenas, ou biliões até, de passos. Mas onde está não interessa verdadeiramente. Interessa mais onde não está – ao lado da carta fechada que escreveu com a própria mão, para apaziguar a frieza do acto. Talvez estivesse sozinha, talvez estivesse acompanhada. A cama era larga o suficiente para dois, mas de que modo poderia ter a certeza de que se fizera acompanhar no sono não sabia. Mais valeria que se esquecesse. Para trás.

Só levanta a cabeça quando escuta uma voz, misturada em todas as vozes, que tal como os passos, sempre as ouve, sempre as haverá, sempre combinarão com a existência do ser que caminha. Enquanto existe, caminha; enquanto caminha, fala. Uma voz fala e só lhe acode ao olhar porque é dirigida a si. Sabe-o porque o que pronunciar é o seu nome. Mas não a reconhece. Não pode, aliás, reconhecer, porque nuca a ouviu, nem tão pouco lhe viu os passos. Não sabe quem é e conhece inteiramente. Conhece de dentro para fora sem tão pouco ter visto o lado de fora. Um avesso desconcertante e arriscado. Mas ali está – no lugar oposto àquele onde não está, perto daquela carta.

O outro ser apercebe-se de que existem lágrimas nos seus olhos quando levanta a cabeça. É um mistério o porquê, mas não é inédito dada a circunstância. Combinam, até, com a chuva fina que espirra das nuvens grossas. Parece um ambiente perfeito, quando posto lado a lado, como que emoldurado. Será de esperar, talvez. Agora, só tem que se levantar, juntar os seus passos aos restantes e entrar num carro que a conduzirá a um outro local, um local que, como aquele, nunca viu, não sabe qual é, excepto que não é o que deixou para trás. Há que limpar aquelas lágrimas primeiro, contudo; causam irritação nos olhos e o ar está demasiadamente frio para eles arderem. E lá vai.

O percurso poderia ser silencioso. Não foi, mas não interessa, porque perdeu a relevância. Estas palavras, agora, não são como as outras, antes entram num espectro de intimidade que sempre existiu, mas de nova fórmula e aspecto. A viagem é uma maturação inédita do acarretar de consequências, de um misturar com a consciência que se recusa a admitir qualquer coisa – que para trás, ficou uma carta ao lado de alguém (ou ninguém?), por exemplo. Cheira a tabaco, ali. Ele fuma, pensa. Tanto melhor, completa, e puxa também de um cigarro sem qualquer permissão. Que o faça. Não haverá agora impedimento que se lhe possa atribuir. As relações entre morais e acções foram quebradas a partir do momento em que se sentou na luz pálida da manhã nublosa a escrever aquelas palavras. Não eram novas; não foram então pensadas. Estavam memorizadas havia muito tempo, já queriam sair havia dias. Finalmente saíram. Eram agora livres e exerciam a sua liberdade sobre outro – e prendiam-no. Se a ela a liberara, também prendera. Perde-se sempre um pedaço de si próprio quando se avança. Fica sempre um decalque na superfície que se pisa. O soalho não fala, mas range; as paredes não cantam, mas caem sempre. A tinta lá se vai lascando, há-de sobrar o arcaboiço de uma edificação velha de séculos idos, toda ela de madeira. Apostaria que há por ali ratos, mas também isso não interessa, porque os ratos podem viver, agora; não a incomodam. A menos que exista outro inquilino a quem incomodar. A pouco e pouco, vai-se esquecendo disso.

A viagem é uma maturação. Como se nas últimas horas, regressasse ao embrião do útero que abandonara anos antes e renascesse. Repetira todo o processo naquelas sete ou oito horas, ou coisa que o valha. Talvez mais. E agora, imaginava que existia uma outra vivência que a transformara em alguém. Estava também com a sensação de que vinha aí uma bruta dor de cabeça. A língua seca; tinha sede. Uma comichão percorria-lhe a perna como se nascesse de dentro, talvez fosse aquela vida passada a querer mostrar-se no presente. Coça-te que isso passa – demorou, mas lá passou. Agora, está a maturar. Enquanto estava sentada num banco de madeira humedecida do inverno, de cabeça apoiada numa mão que tremia de frio porque lá se apercebeu que a roupa mudava tanto quanto a cultura de país para país, não fosse o cinzento climático ter diversos significados de nação para nação, fora adolescente. Agora, já era mulher, feita e preparada, ainda que fresca de renascida. Queria fazer era disparates, como recém-mulher. Estava na idade da intriga. Mais uns minutinhos e aquilo passava.

Passou. Quando o carro parou, renasceu para a idade actual, fosse ela qual fosse, certamente mais do que tivera dentro daquele carro, ainda mais do que tivera naquele banco, e abismalmente diferente do durante da viagem. Aí, era quase bebé. Saiu para o ar frio já sem sentir o peso da humidade. Era só frio, agora. Já estava. Aceite, comprometida com outro lugar. Já não se lembrava da carta escrita pela própria mão nem do corpo, ou não, que dormia ao lado dela e que lá acabaria por a ler. Já só restava uma sensação de vai-vem daquela comichão que, agora, não sabia interpretar. Mudou-se, assim. Rapidamente.

A porta abriu. Uma porta que dava para uma casa que nunca vira na sua vida, daquela pessoa que até então não conhecera por fora, apenas por dentro. Agora, pode vê-la. Meu Deus, parece um santuário, pensa, e cheira terrivelmente a incenso. Terrivelmente mas não no sentido negativo, antes agravado. Cheira bem. Até gosta do cheiro a incenso. Tem quase a certeza que é de tangerina. Há ali um buda pequeno numa mesinha e um póster de uma banda. Não interessa qual a banda, se se disser e se se descobrir, distrai-se. Ela prefere não conhecer. A cama é rasa, está ao centro, como se não houvesse mais compartimento algum naquele cubículo. Não é tão cubículo assim, convenhamos. Lá se abre para outras coisas do essencial, como cozinhas e casas-de-banho. Mas que tem em falta uma sala comum, tem, talvez sofá e mesinha de café para se fazer migalhas à vontade. Tem aspecto de casa de estudante. Até pratos sujos empilhados numa secretária tem. Mas não lhe incomoda. Sente-se em casa; não tem outra, só tem aquilo. Sente que nunca esteve noutro lugar porque o passado desapareceu. Afinal, renasceu há pouco tempo.

É tudo amarelo e esverdeado. Almofadas, colchas, coisas que por aqui e ali despoletam em tons de verde e, as luzes, essas, de fora e dentro da casa, são amarelas como o sol torrado difuso pelas nuvens. Amarelo e verde. Há qualquer conforto nisso, não sabe qual. Não lhe interessa. Decidiu-se a não questionar. Agora, senta-se a uma cadeira e larga a mala no chão – pois traz uma mala, até se esquecia. Não é muito grande, não se preocupou com empacotamentos de grande necessidade. Roupas, higienes e o suficiente para recriar, renascer e sentir-se humana com tudo o que precisava a subsistir. Menos dinheiro, diga-se. Dessa, terá de se desenvencilhar brevemente. Embora ainda exista ali qualquer coisa nos bolsos – e na carteira – e numa outra carteira dentro da mala. O resto, ficou no banco. A icinerar-se nas calhas económicas, agora que poderia apostar que nunca mais o veria. Tanto melhor para os balofos do outro lado do balcão e os grisalhos da cartola. Agradecer-lhe-iam. Julgava que sim. Desde que não soubessem da carta (qual carta?).

Sentaram-se logo a conversar. Ele perguntava-lhe porque estava a chorar, e ela abanou a cabeça porque se esquecera, porque isso era de outra vida, era ainda um espectro fantasmagórico ali a alcançá-la, a tocá-la, a tentar chegar-se perto dela para lhe entrar no corpo e dizer, ai de ti que me deixes. Deixou. Ele perguntou: porque é que vieste para aqui? Ela respondeu: porque sou exilada. E porque és exilada, pergunta ele. Também disso já não se lembra (qual carta?). Basta-lhe encolher os ombros. Ele também não se importa. A sua existência não se resume a perguntas e respostas, mas às moléculas, átomos e matéria que a compõe enquanto corpo e mente. Talvez também já tenha deixado coisas para trás – estava sempre a deixar, aliás. Nele, não havia raízes, já ela tivera de as cortar. E aquela comichão ali a acudir-lhe à perna, além de desconfortável, era feio de se ver como se torcia. O que está para trás desaparece se se cortar com força suficiente. Ele perguntou o que pretendia ela fazer. Ainda pensou um pouco antes de responder, mas resumir tudo aquilo em frases e frases e pensamentos que nunca mais acabavam afigurava-se-lhe a uma inutilidade enorme. Viver, respondeu. Pois de morrer é que não havia. Perguntou-lhe, tens alguma coisa que se beba? Ele levantou-se. Queres água? Não, queria outra coisa. Havia vinho. Ainda melhor.

You Might Also Like

0 torradas

Etiquetas