Abstracção #6

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Quando era criança, passava-se muito por uma criaturinha selvagem impossível de domar. E para os pais, a palavra era precisamente essa: selvagem. Não havia método de os professores a conseguirem chamar à atenção porque ela não conseguia ver as suas acções como erros. Talvez tenha sido mesmo livre, pois toda a criança o é quando nasce, mas apertam-se-lhe em volta as grilhetas da sociedade, que é como quem diz, é moldada num triângulo, o seu lado extra cortado assim rapidamente, para doer menos, e mais importante do que isso, antes que se aperceba, de tal modo que nem dor sente, e enfiada naquele espacinho quadrangular de onde se espera que caiba, tamanho perfeito, lados iguais, ranhuras à medida, tudo medido e contado consoante os parâmetros societais.
Mas de alguma forma, ela lá se escapara, e contrário à esperança de uma criança que cresce e evolui como ser integrante de um colectivo, ainda que lhe queiram chamar de autónomo, pois de autónomo não tem nada, que lhe dão logo adubo para as raízes crescerem e se expandirem pelo solo até se agarrarem aos outros e a transformarem – e a todas as crianças – em adultos dependentes; de alguma forma, ela escapava-se sempre a isto e por cada vez que um lado lhe era cortado, nasciam-lhe outros dois.
Às tantas os lados perderem-se-lhe nas contas, e por alturas da adolescência já era um hexágono. Os pais davam em doidos, como aliás daria qualquer pessoa consciente da necessidade de integração. O pior era na escola. Já nem cabia na carteira que era, também ela, como se esperaria, feita à medida de quadrados. Até as roupas se transformaram nessa lembrança do pesadelo que era ver-se a filha a sair dos conformes. Também as roupas eram talhadas à medida para quadrados e não para outras formas, embora existisse sempre uma secção infantil que se baseava mais em triângulos, mas as crianças mesmo pequenas, essas, ainda em fase de mamar e berrar e cuspir a comida toda depois de a comer, não eram quadrados porque ainda eram moldes de barru cru à espera das milhares de mãos que lhes apertariam os contornos e os empurrariam para aquela aberturazinha quadrada por onde teriam de se espremer.
Mas não esta criança. Com três anos apenas, já com as pernas gordas o suficiente e os pés firmes do andar já muito praticado, ganhou gosto por correr. Não andava, só corria. Os pais não a podiam levar ao parque, tudo o que fazia era correr às voltas e às voltas e às voltas e às voltas dos baloiços, dos escorregas, dos castelos de índios, das cordas de trepar. Ocasionalmente, lá trepava a corda ou subia para os escadotes dos escorregas ou das casas de madeira, mas atirava-se muito depressa e continuava a correr. Nunca se cansava. A energia não se esgotava. Corria e corria e corria e, pelo final do dia, sentava-se à mesa do jantar depois de muitos gritos dos pais, comia calmamente e levantava-se para correr mais. Às nove e meia da noite, dormia. Doze horas certas, sempre doze horas certíssimas.
Com cinco anos, aprendeu a apreciar o risco das alturas, a mesma sensação de adrenalina que lhe dava aquela excitação entre a vida e a morte, como se pôde avaliar na forma como as unhas raspavam o betão e as pernas abanavam para sentir o parapeito debaixo delas sempre que um súbito aborrecimento lhe tomava conta da mente. Descobrira a sensação de deleite ao trepar um banco para esticar os bracinhos ainda curtos e abrir um armário onde ela sabia estarem escondidos frascos e fracos de doces, goluseimas, bolachas. O banco abanou, ela quase caiu, mas o terror súbito veio-lhe quando abre a portinhola do armário e um frasco balança e cai de razia junto ao seu rosto, chegou mesmo a sentir o frio do vidro, espatifando-se no chão. Os pais acorrerem ao estranho incidente, assustados, evidentemente, mas mais pelo som de algo a cair e espatifar-se daquela forma, pensando com naturalidade, o que terá causado aquilo, assombrada é que esta casa não está, e percebendo depois, oh meu deus, foi a miúda, e lá correram a pensar, pronto, magoou-se e não tarda está-me para aqui a chorar. Mas não. Encontraram-na empoleirada no banquinho (que era mais bancão para a criança curta que ainda era) a olhar atentamente para o vidro espatifado. Já esticava um pézinho na direcção do chão para saltar do banco, mas vendo que ela estava descalça, os pais lançaram-se logo à pequena e arrancaram-na dali. O que a pequena sentira, contudo, fora um curto segmento de vida extremamente excitante do momento em que aquele frasco de vidro lhe rasara o rosto e se espatifara no chão. Pensava na possibilidade de o frasco lhe ter acertado em cheio na cabeça. Era grande, muito grande para ela, ainda pequena, de vidro grosso e uma armação de metal que funcionava como fecho da tampa. No chão, espalhavam-se os cacos como estalagmites, como blocos de granito caído, espatifadíssimo, misturado por entre bolachas de chocolate de pepitas, agora estragadas.
A sensação nunca desapareceria, aliás, seria a que mais prazer no seu viver lhe daria, até que a respiração lhe cessasse e lá fosse ela também a misturar-se com a história, a rebolar na terra de larvas e a ser comida pelo chão que pisava. Durante anos da infância que se revelou um verdadeiro terror para os pais, na constante amargura de ver a menina enfiada em traquinices que podiam transformar-se em verdadeiras chatices trágicas se não tivesse cuidado. Trepava todas as árvores e tornou-se ágil o bastante para se escapulir dos pais e fazê-lo até no escuro. Lá conseguia enrolar-se nos troncos e escalá-los com habilidade, e deixava-se ficar lá em cima, pendurada e agarrada aos ramos, a ver as coisas pequeninas abaixo dos seus pés e abanando as pernas quando se sentia aborrecida na esperança de recuperar aquela sensação do momento emq ue o frasco de vidro lhe resvalara o rosto. Caiu uma vez. Partiu o braço. Andou com ele ao peito por tanto tempo que acabou por se esquecer de trepar árvores, além de que os pais passaram a manter olho vigilante na menina, não fosse armar mais alguma até de braço ao peito. Mas coisas para trepar haviam-nas e muitas. Subiu aos móveis, aos sofás, à mesa da sala de jantar, de sapatos e tudo. Saltitava sobre as secretárias da escola nos intervalos do almoço, quando ninguém via. Subia escadas, terraços, varandas e empoleirava-se em todos eles quanto maior fosse a altura. Pequena espreitava através dos muros e paredes, janelas e parapeitos, e observava as coisas pequenas lá em baixo. Se se inclinava, lá vinha aquele formigueiro do perigo a fazê-la sentir-se viva; se estendia os dois braços para a frente, uma vez que ambos os braços se mostraram operacionáveis, tornava a senti-lo, o fervilhar debaixo da pele de excitação.
Outras vezes ainda, agarrava qualquer coisa que gostava muito, como o seu brinquedo preferido, e estendia a mão a segurá-lo. Sentindo-se na iminência dos dedos fraquejarem e largarem o brinquedo lá para baixo, deixava-se encher de um maior desafio, o maior até então: era ela contra ela própria, a testar a sua própria força e persistência, a lutar por aquele maldito brinquedo que não haveria de cair lá para baixo nem que a vaca tossisse, que era logo o seu preferido. Mas era por isso que escolhia sempre o preferido, para sentir o risco ainda mais intensamente, para viver mais de perto o horror da possibilidade de largar aquele brinquedo, para sentir o braço durido mas resistindo, cada vez mais, enquanto ela lá mordia o lábio quando não praguejava para si própria e debitava entredentes, ai de ti, ai de ti que o deixes cair!
Embora esta fosse uma excitação sua que permaneceria por toda a vida, ela foi atenuando com o crescimento para dar lugar a outras coisas, umas típicas e banais de crianças adolescente, particularmente de rapariga, que cresce nessa piscina de hormonas e nada a esbracejar-se em desespero para não se afogar, mas tão recorrente no mundo de triângulos que para aqui não interessará. Interessará o que fez de si as diversas formas que adoptou ao longo do crescimento, e aicma de tudo, como chegou à forma final do seu agora companheiro de vivência, seja lá o que ele na realidade for, proclamou ser um círculo.
Aos doze anos descobriu nova paixão que suscitou de um grande aborrecimento banal esse de jovenzinha a amadurecer que é o desagrado por todas as roupas que encontra nas lojas. Achava-as iguais, os mesmo padrões, os mesmos tecidos, as mesmas formas, as mesmas frases pirosas e carregadas de brilhantes, as mesmas palavras vorazes de significados javardos para miúdas, as mesmas alusões a coisas que ela ainda não estava propriamente formatada para entender, mas que anos mais tarde se provariam certas, sempre a mesma coisa, a mesma paleta de cores, as mesmas conjugações, as mesas as mesmas e as mesmas. E ela cansou-se. Mas isto não lhe perturbou muito, pois entendendo que permanecera triângulo apesar de tudo, a então menina tomou pelas próprias mãos a solução daquele problema e grande chatice. Ora por esta altura, os pais lá se deixaram de preocupar com as taras e manias da agora pré-adolescente e aceitaram que ela era diferente, à sua maneira, sim, talvez fosse essa a palavra, diferente, diferente num status quo colectivo de uniformidade, diga-se homogeneidade, mas que a aceitação do estatuto de extrema diferença, dirão as más-linguas aberração, não prescinda da equação de amor pela filha, que filha é filha, diferente ou não.
Assim, contrariada, ela agarrou nos seus próprios instrumentos de costura e decidiu ser modista. Não decidiu ser modista porque a profissão lhe fosse agradável, um sonho, um objectivo a alcançar na vida, uma coisa que visionava como um futuro brilhante, um sonho, uma ambição, mas porque nada nas malditas lojas de roupa lhe agradava e decidiu resolver ela aquele problema. Com doze primaveras, decidiu criar o seu próprio tipo de roupa, se ir tão longe fosse necessário, e pensou para si mesma: vou fazer roupas para quadrados, hexágonos, octógonos, losângos! Para todas as formas que não triângulos. Não foi apenas uma passagem na sua vida, foi uma coisa que se demonstrou duradoira. Conquanto que não viesse a vestir unicamente roupas fabricadas por si, momentos lá haveria em que seria capaz de encontrar uma peça ou outra que lhe coubesse, talvez lá teria de as adulterar, mas nada demais – e sempre chega a um ponto em que até as mais diversificadas formas aprendem a misturar-se com os restantes – de maneira que tempos deocrriam em que não fabricava nada.
Mas poderia dizer-se que se tratava de uma rapariguinha adolescente com o seu quê de criatividade. De facto, tinha uma cabeça que corria mais depressa do que ela era capaz e via-se extenuada constantemente de a tentar acompanhar. Apaixonava-se intensamente várias vezes por semanas, fosse por pessoas, fosse por objectos, fosse por actividades, e chegava a deixar essas paixões consumirem-lhe o pensamento, o seu, acrescentar-lhe ou cortar-lhe um lado, fosse que influência fosse aquela que acabaria por receber. Na era do digital, ainda usava máquina fotográfica analógica, com essa chatice eterna que é a do rolo, apenas pelo prazer nostálgico de segurar as fotografias impressas em papel brilhante, sujá-las de dedadas e guardá-las dentro de um álbum velho de páginas amareladas que requeriam que as fotografias se colassem. As fotografias, essas, podiam ser de tudo – não era apenas ela e amigos e família e eventos – aliás, raramente o era. Porque essas coisas, e pessoas, as via diariamente, preocupava-se mais em guardar uma recordação apenas de cada momento significativo das suas vidas. Quando um amigo pintava o cabelo, fotografava-o para guardar aquela evidência ao lado da outra, da do passado, e poder pôr em comparação. O mesmo se fazia um piercing, engravidava, engordava ou emagracia, ia de férias e voltava bronzeado, fazia uma tatuagem, casava-se. Todas essas fotografias, cronologias imagéticas dos outros, daqueles que lhe acompanhavam a vida, estavam guardadas num álbum à parte, guardado numa prateleira bem alta, para que lhe custasse aceder, que olhá-las demasiado seria habituar-se à mudança deles, tornar-se-ia familiar, e isso deixava de lhe atribuir um certo factor surpresa, que lhe sabia de forma semelhante àquele momento em que o frasco de vidro lhe rasou o rosto e se espatifou no chão, ainda em pequena.
E claro: fazia o mesmo consigo própria. O hábito veio dos pais, que, como manda a tradição de pai orgulhoso, lá a fotografaram no seu primeiro fato de carnaval, a dar os seus primeiros passos, a comer a primeira papa, a cortar o primeiro bife, a brincar com o primeiro brinquedo, a vestir a primeira bata da escola, a andar no primeiro triciclo, a pedalar a primeira bicicleta, a exibir o primeiro gesso enrolado no braço com as primeiras assinaturas, a calçar o primeiro par de sapatos de saltos altos. Todas estas coisas, e muitíssimas mais, como se deverá calcular, dificílimas de evocar em completo neste momento, encontram-se registadas num álbum de capa grossa e rija, coberto numa imitação de couro castanho, onde se perfilam os anos da sua existência com base nos contrastes. Mas entre esses eventos, nos espaços e intervalos da sua existência além deles, nada existe. De cada evento, existe uma fotografia apenas; nenhuma peça de vestuário se repete, salvo um camisolão verde com peixinhos azuis que lá usara na primeira festa de anos com amigos e também na primeira vez que pedalou a bicicleta, um lapso, um erro, mas que os pais prontamente se certificaram de que não tornaria a acontecer. Por cada evento, havia apenas uma fotografia, regra de ouro e importantíssima, aliás, a mais rigidamente a ser seguida, caso contrário, estragaria desde logo toda a mágica do princípio. Não convinha que se escolhesse por entre milhares de fotografias; desacreditava fortemente nessa ideia de fotografar duzentas e trinta e três vezes um só evento para depois poder escolher uma só e exibir aos amigos com orgulho. Preferia ter uma e apreciá-la intimamente, era aquela, era a única, era muitíssimo mais susceptível de amor seu e apreciação e era melhor que as coisas se mantivessem assim. Muito por onde escolher confunde, e já a mãe lhe dizia quando a encontrava a escolher roupa junto ao armário ou a costurar as suas próprias roupas, tivesse uma só peça e não te queixavas!

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