Os Crimes da Saia Púrpura

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Era um som característico, o arrastar de algo pesado sobre minúsculas pedrinhas – o carreiro de areia clara que corta a verdura de Hyde Park. Arrastava-se e arrastava-se; primeiro, ao longe, depois, mais perto; por fim, mesmo ali, à sua frente; primeiro, distante, depois, um tanto incómodo. Clive sabia que não precisava de erguer os olhos para saber de onde provinha o som, qual a sua origem. Qualquer um saberia dizer que eram passos, simplesmente passos; passos apressados; passos longos, pesados; passos que, a avaliar pela velocidade, pela duração, pelo som, provinham de alguma mulher tipicamente londrina. Isto porque os passos tinham a particular característica de, embora largos, serem muito precisos e perfeitamente coordenados, como se cronometrados, leves e pesados, ao mesmo tempo, provocando um som mais suave e aberto do que se de um homem se tratasse; os passos de um homem são descoordenados, descompassados, ilógicos, atrapalhados, e produziriam um som mais abafado.

Por essa razão, já a mente de Clive se havia distraído das palavras que pintavam as páginas amarelecidas do velho livro que segurava entre as mãos, aberto, sobre os joelhos. Pela altura em que os passos surgiram, já ele deixara de compreender o significado das palavras, e ainda assim, lia-as. A certo momento, os passos eram uma música constante cujas notas procurava decifrar, conquanto que, as palavras do livro, nada mais eram do que meros motivos de adorno de velhas páginas; e, por isso, perdeu-as. No momento em que os ouviu, tentara perceber de onde provinham, qual seria a sua história, quem os emitia, que tipo de sapatos provocaria tal ruído, até. Pois a certa altura, deixou de ser irritante ou perturbante, e transformou-se numa melodia, num som reconfortante, como as ondas do mar, ou os sinos de uma igreja, ou o vento a soprar levemente, ou um bebé a chorar; todos esses sons que nos fazem parar por momentos e pensar que espécie de intervenção divina levaria tal barulho a soar, alegando uma espécie de beleza, atribuindo-lhe uma espécie de misticismo. Na verdade, após aquele tempo – curto ou longo, não interessava, porque quando aqueles passos surgiram, tudo lhe parecia intemporal – era exactamente assim que estes passos lhe soavam. Agora que toda a sua atenção fora sugada para algo além do livro, das palavras, da escrita, ele precisava de saber mais; de onde vinham, de quem provinham, tudo isso que, à partida, nos parece inútil.

Por isso, com calma, desviou o olhar, languidamente movendo os olhos escondidos pelas finas lentes dos óculos, para o que queria que fosse que captasse a sua atenção. Depôs o livro, no entanto, antes de conseguir fixar a vista no que queria que fosse que se estendesse à sua frente, deixando-o deslizar sobre os seu joelhos, como que fugindo, caindo sobre a madeira do banco. E então, o verde, toda a verdura de Hyde Park, foi cortada pela imagem negra e púrpura que se lhe atravessou. Os passos, viu então, provinham de um par de sapatos de salto alto em sola de borracha. O andar era rápido, mas não apressado. Andava, simplesmente andava, conduzida pelo vento, pelo dever, pela atmosfera – por quê? Levava um livro na mão e uma malinha preta e pequena pendurada ao ombro direito. De vez em quando, a mão direita endireitava a rebelde alça que teimava em cair. Era na esquerda que o livro estava seguro e apertado contra o peito. Clive não teve a certeza de qual teria sdo o facto que o levou tão prontamente a olhá-la, mas agora que erguera o olhar míope, parecia-lhe impossível afastá-lo.

Ali estava ela: não era muito alta, salvo os saltos dos sapatos, andava relativamente depressa, mas não apressadamente, segurava um livro e levava uma mala pequena e preta ao ombro; estava vestida com um casaco preto e uma saia púrpura que lhe roçava os joelhos – um tecido fino, tão fino que ondulava mesmo naquele dia sem vento. Parou de repente, mesmo ali, em frente aos olhos vidrados de Clive; levantando a mão que segurava o livro, rodopiou-o com cuidado, não fosse este cair no chão, e, assim, viu as horas no pequeno relógio castanho enrolado em volta do seu alvo pulso. Os olhos fixaram algo mais além – mas algo bem perto. Clive sentiu-se encher de um calor que não era inglês. Não lhe conseguia descolar os olhos, mas temeu ter sido descoberto e, consequentemente, temeu algo de escandaloso. Mas nada disso – ela limitou-se a sentar-se num banco vago de madeira ao lado dele.

Fê-lo. Ele seguiu-a. Ela notou, mas não lhe deu importância. Algo mais a perturbava. Àquela distância, reparou como tinha olhos verdes, que contrastados com o cabelo tão negro, em nada se assemelhava a uma mulher inglesa. A mão esquerda – agora vaga, pois poisara o seu livro do seu lado esquerdo, e Clive pode ver sem dificuldade que se tratava de um manual de literatura inglesa do século XX – alcançou a pequena malinha, de onde puxou um isqueiro e um maço de tabaco vermelho. Foi enquanto acendia um cigarro que lançou um olhar discreto e desamparado para o seu lado esquerdo. O homem intimidou-se; só poderia ter se sentido intimidado. Puxou de novo o livro, reabriu-o, tentou fixar-se na sua leitura, mas não conseguiu. Deslizou lentamente os olhos para o lado, o livro ainda aberto sobre o seu colo; conseguiu vê-la, pois parecia que nada o impedia.

Apoiava o peso da cabeça sobre a mão esquerda; a direita segurava o cigarro, ia e vinha. De quando em quando, erguia a cabeça, unia os lábios, muito vermelhos, mas sem qualquer tipo de cosmética; unia-os e deixava que o fumo saísse por entre uma muito ligeira abertura, e este evaporava-se no ar, confundia-se com as nuvens, com o ambiente. E retomava, a cabeça caía-lhe novamente sobre a mão, fechava os olhos, movia-se, incomodada pelos seus próprios pensamentos; o homem sentiu uma curiosidade de morte para saber o que lhe passava pela cabeça, o que lhe atravessava os pensamentos. A mão fechou-se sobre o cabelo preto, no alto da cabeça; os reflexos prateados causados pelo sol desapareceram, a mão amachucando-os como um poeta amachuca os seus poemas malditos. Largou-os, mas ajeitou-os de novo à medida que libertava mais uma nuvem de fumo. Notou então: os longos fios negros confundiam-se com o casaco, o homem não conseguiu perceber onde acabavam; não àquela distância. E quando um novo olhar surgiu provindo dela, ele concentrou-se novamente apenas no livro, preso entre as suas mãos e poisado sobre os seus joelhos, mas apenas por um curto espaço de tempo.

Quando o cigarro acabou, lançou-o para a frente, antes disso esmagando-o contra a madeira, na certeza de que o fizera correctamente. De novo lhe cai a cabeça para a mão e, desta vez, a mão direita junta-se-lhe; ambas cobrem o rosto por completo, e solta um espasmo por todo o seu corpo. Os olhos míopes de Clive viram-no, mas ele não conseguia acreditar: estava mesmo a chorar? A lacrimejar? Estava: ouviu-lhe os soluços pesados dali, de onde estava sentado, talvez a qualquer coisa como cinco metros de distância; e mais um espasmo; possivelmente outro. Clive assustou-se; não conseguia dizer porquê, mas sabia que a razão era a mesma por que os seus passos o haviam encantado, deslumbrado, feito música, música solene, assombrosa, assustadora. Uma mão agarrou de novo o cabelo, como se aquilo fosse uma espécie de castigo, de auto-punição. Apertou-os; o homem viu-lhe os fios escorrerem-lhe por entre os dedos, e embora fossem negros como uma noite sem lua, sem qualquer evidência de que tonalidade fosse de vermelho, lembraram-lhe sangue. Arrepiou-se, praguejando só para si quando conseguiu afastar o pensamento.

Quando deu por si, tinha todo o corpo voltado para ela, mas ela não lhe reagia mais. Enterrada nas suas mãos, onde ele tão persistentemente se parecia convencer de que aqueles fios pretos em tanto se assemelhavam a sangue, o corpo continuava a libertar espasmos de soluços mudos. Clive quis se mexer, mas porquê, por que força, que ideia era aquela, não o sabia; e, portanto, não o fez. Não ainda; decidiu aguardar. O livro pesava-lhe no colo, e o colo queria mover-se e lançar o livro para longe. O corpo continuava a soltar espasmos, a saia púrpura oscilando a cada impulso deste. À parte disso, nenhum outro músculo se parecia mover. Ele levou uma mão ao assento e, como que antevendo a sua atitude mas, ainda assim, a desacreditando, deu por si surpreso quando se sentiu empurrar o próprio corpo para cima.

Avançou; e os seus passos deveriam ser muito aborrecido, ou pouco sonantes, ou mesmo irritantes, pois ao contrário daquilo que os passos dela lhe tinham causado, nada parecia suceder-se agora em relação a ela, mas com os seus próprio passos. Como uma criança curiosa, baixou o olhar para os pés de sobrolho franzido, apenas para erguer de novo o olhar para a mulher chorosa. Antes de avançar completamente, baixou-se para alcançar o livro, apertou-o debaixo do braço e suspirou. Não sabia o que ia fazer – mas ia fazê-lo.

O que a fez erguer o olhar terá sido a sua sombra, pensou. Uma sombra escura que se abateu sobre ela numa tarde solarenga mas ainda asism fresca do Hyde Park. Uma sombra que, também para ela, cortava toda a paisagem verdejante que se estendia para lá. Assim, ela ergueu o olhar e fitou-o. Um rosto pálido, liso, quase inexpressivo, não fosse o brilho das suas lágrimas tingirem-lhe as bochechas rosadas, os olhos muito verdes circundados de um halo vermelho da sua tristeza súbita. Mas não fosse isso, ele não poderia ter adivinhado que aquela mulher parecia desgostosa.

Olhou-o e nada disse, baixando novamente a cara para as mãos, enterrando-a nelas. O corpo voltou a libertar espasmos, mas desta vez, Clive conseguia-lhe ouvir o choro; uma música melancólica, conjugadas por um stacatto de suspiros, meros arquejos de mágoa pura, apenas detectável na sua audição, e impossível de ser avistada naquele estranho rosto. Clive sentiu-se deliciar de igual forma por aquele som como se sentira pelos seus passos. Instintivamente, deixou que o seu corpo tombasse lentamente sobre a madeira do banco ao seu lado, o livro escorregando-lhe da mão sem que desse por isso. Os tremores parecia acalmar, como se se apercebesse da presença dele. A mão de Clive subiu lentamente até ao seu pescoço e para os ombro. Que impulso era aquele, ele não sabia, mas era a sua perfeita conjugação de um tom púrpura esborratado de negros aqui e ali, de uns olhos verdes profundos cobertos de lágrimas, de um misteriosos passos que tanto o deslumbraram e daquela maravilhosa melodia de tristeza – era tudo isso que o levara desde o seu banquinho até ali, deixando o livro de parte, esquecendo-o por completo.

Deixara tudo isso de lhe interessar no momento em que o braço se colou completamente ao corpo dela, a mão espalmando sobre o seu braço, a força dele quase nula parecendo extraordinária no momento em que a puxou para si. Moveu-se automaticamente; a cabeça encostou ao seu peito, os cabelos negros espalhando-se sobre a sua camisa branca. As mãos delas seguraram-lhe as roupas, como se tentasse extrair dali qualquer vitalidade que poderia ter pedido, sugando-a através das unhas que se lhe cravavam, dos dedos brancos e esguios que procuravam apertá-lo. Clive deixou-a chorar, como se isso lhe dissesse respeito; deixou que ela lhe largasse os espasmos do corpo em cima; deixou que se acalmasse sob as suas carícias no seu cabelo. E enquanto tudo isto, enquanto ele procurava acabar com todo aquele choro tão proeminente numa mulher que, apenas minutos antes, o deslumbrara misteriosamente, ela não disse uma única palavra.

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